domingo, 31 de janeiro de 2016

Cortina Vermelha

Levanto-me e abro a cortina vermelha. Inspiro fundo. A manhã caiu molhada sobre as fotografias espalhadas no parapeito da janela.
Algo mudou lá fora.
Tudo cheira a luz e a sombra das coisas despiu-se de melancolias.
Pergunto-te se serei capaz de viver sob este efeito, este filtro simples do teu olhar. Estás deitado sobre a tua janela, sobre as casas a amanhecerem-te nas mãos (ninguém deveria viver tão alto, penso). Respondes: pedes que te deixe matar-me. Que é isso que se faz quando se ama.
E eu sorrio com a perfeição do teu fogo.
Nesse instante, decido: uma destas manhãs lanço âncoras no teu céu e deixo-me ficar a ver-te seres claridade. Talvez me voltes a fazer acreditar na linguagem límpida das palavras, talvez me construas pálpebras de luz, e me lembres que a fuga é possível; que o mundo não é, afinal, apenas este lugar onde nos esbatemos lentamente, como uma memória velha que não encontra lugar nas molduras em cima da cómoda.

Até lá,
deito-me na sombra desta cortina vermelha e espero que os dias me cubram os ombros de pássaros.
Um dia nascer-me-ão as asas dos caminhos até ti.


Saul Leiter - Red Courtain






terça-feira, 26 de janeiro de 2016

The point of abandonment

Rasgado no meio dos olhos,
o Homem arde as escadas,
fôlego a fôlego.

Os ombros pesam-lhe,
rasgam-se pelas costuras
com o peso da gangrena.

Está dentro 
dentro da carne,
exposto à cegueira do mundo.

A vida veio e partiu.
Os esgotos encheram-se com os seus ossos,
e nas veias,
apenas os suicídios lhe cumprem
a luz dos candeeiros envelhecidos.

Nada mais resta.
Nada mais respira.
Apenas os pés,
cheios de raiva e murmúrios
fazem doer a morte
de baixo para cima.

Um navio cego,
numa floresta negra.
e,
de repente,
todo o corpo dói,
todo o sangue se despede.

Adeus.
Adeus.
A
   Deus.


Fátima Abreu Ferreira, Porto, Bolhão, Janeiro de 2016

domingo, 24 de janeiro de 2016

Aduela

Estendes as mãos
à carne das minhas palavras.
Não há melancolia.
Apenas o silêncio,
incendiando as portas
- sangrentas -
dos nossos olhos.

Juntos,
atravessamos os espíritos da cidade.
A pele
aprendendo a salvação
na loucura da garganta;
as línguas
acordando como facas iluminadas.

Somos o Poema.
A loucura fundamental do sangue.

À nossa volta,
tudo se distancia.
Tudo procura o frio da cegueira,
a morte das estrelas.

Só nós,
pesados de fogo e vísceras,
carregamos qualquer coisa eterna.
Límpida.
Serena.

Larry Fink




segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

E desfazia-se a carne, quando o mundo acordava

É na minha mão,
na curva quente dos meus dedos
que dorme o fogo
das coisas àsperas,
e a luz incendiada da manhã.

Fátima Abreu Ferreira 

domingo, 10 de janeiro de 2016

Veneno de Domingo.

Como se fosse impossível continuar,
desprendi-me da urgência.
Engoli as noites que tornavam
ásperas
as minhas paredes;
deixei-me adormecer na sombra
da poeira que escondia nos cantos.

É Domingo.

Os muros cresceram-me à janela,
no lugar onde vendias
a boca por um incêndio.
Por entre as chuvas de Janeiro,
fizeram-se árvores,
fizeram-se silêncio;
agora, nenhuma luz entra
e nada mais se cumpre.

Nem mesmo a tua solidão.


Daido Moriyama

sábado, 2 de janeiro de 2016

Nova língua

Uma voz.
Os dedos.
As mãos movendo-se
por entre as nascentes dos ossos.

Dentro da chuva,
a palavra suplica uma tempestade,
queimadura branca
árdua,
ofegante raíz
na minha garganta.

Lembro-me
(ao longe)
de que sei respirar e
acendo as sombras;
ponho-me a inventar línguas
no desespero
- absoluto -
de ensinar à minha boca
um novo poema.



Daido Moriyama