quarta-feira, 16 de março de 2016

Considerações filosóficas de um prenúncio primaveril

É, portanto, isto o Amor.
Reconhecer alguém pelos nós dos dedos. Pelas linhas que desenham os abismos diários. Fracturas expostas, mesmo dos dias em que não se vive. Como as Terças -feiras. (ninguém vive às Terças-feiras).
É reconhecer alguém pelas unhas sujas e o verniz estalado. Os dedos dobrados sobre as tristezas que sufocamos.

Ou talvez não.

Talvez nada disto seja Amor, e uma mão seja, apenas, uma mão e os sonhos morram mesmo antes de começarem e nenhuma estrada na tua epiderme tenha sido aberta ao ritmo das tuas feridas.
Ainda assim.
Ainda que as linhas das tuas mãos não sejam um cemitério de ilusões, amar é isto: reconhecer-te pelo nós dos dedos.
Pelo princípio de algo terrível.
Catastroficamente belo.

Fatima Abreu Ferreira, Março, 2016




terça-feira, 8 de março de 2016

Sobre o Amor, crenças e outros abismos

Quantos abismos terei mais que gritar?
Quantas fissuras esgravataremos com as unhas cheias da àgua que precisamos para sobreviver?
Parece-me um desperdício toda esta àgua.
Nas unhas.
Na boca.
Nos olhos.
Sabes que hoje chorei um rio? Quando me apercebi, não tinha pé e os meus braços não sabiam nadar porque lhes faltavam as pernas (e toda a gente sabe que os braços não vão a lado nenhum sem pernas). Fiquei assim, uma espécie de metade. Um fragmento. Uma coisa meia que não saber ser. Nem nadar. (sequer respirar).
De repente, sem saber como, percebi que bastava acreditar. Acreditar que as minhas pernas (ou tu) estavam lá. Que eu era agora uma coisa inteira, capaz de sobreviver.
Tão simples, não é?
Acreditar.
Tudo se resume a isto, na verdade. Ter fé que a profunda claridade dos teus olhos azuis cortar-me-à os pulsos com uma luz inabalável. Capaz de rasgar os abismos dentro do abismo em que me tornei.

Rega-me - peço-te.
Carinhosamente.
Todos os dias.
Até me deixares morrer.

Fátima Abreu Ferreira, Março, 2016

sexta-feira, 4 de março de 2016

Devastemos. Devastemos. Devastemos.

Ainda chove nas ruas.
Uma água misteriosa,
um instinto que explica todas as sombras.

É tempo de milagres,
alguém lembra
(longinquamente)
e a água cai-me na boca
num peso lúbrico,
um incêndio azul.

- Acredita - dizes
como quem pede o fogo.

Não há,
em ti,
gestos ou palavras
incapazes de rasgar
a desordem da minha garganta;
e deitas-me,
muda
sobre todos os meus punhais.

Là fora
a lua rebenta
as ruas alagam-se
e o eco das nossas bocas corre
como um rio
até ao fundo dos esgostos.

"Devastemos,
devastemos,
devastemos."